Joker
Tendemos a nos esquecer de que amor é abstrato. O equiparamos a outras coisas menos abstratas como músicas, poemas ou esse texto; ou a coisas mais concretas, como gestos, palavras; ou coisas completamente concretas, como… Coisas!
Joker foi um cachorro chato que me presenteou na minha primeira manhã dormindo na casa da Prik: ele cagou em mim. Na cabeça dele, talvez umas das formas de cuidar de quem amava era mostrar a esse cabeludo intrometido quem mandava de verdade.
Enquanto eu me fazia de difícil, aprendia que a Prik não ligava para presentes chiques. E que o Joker adorava mais uma embalagem que pudesse matar bem mortinha do que muitos brinquedos. Descobri que a Prik só dorme abraçada. E que o Joker só dorme depois de puxar, arrumar e afofar as cobertas na medida exata entre conforto e bagunça. Ela sobrenaturalmente acordava se a olhasse e ele já dormia de olho meio aberto. Fui namorando a menina e, sem perceber, namorando o cachorro. A dança em volta de sentimentos foi feita por nós três. Da parte dele? Mostrar os dentes e se entortar para lá e para cá.
– Ele está sorrindo para você — me explicava a Prik.
Já tendo me aprovado como namorado, ele me recebeu por algumas vezes mijando no meu colo de felicidade. E se despediu, por muitas vezes mais, triste na soleira da porta ou num degrau da escada me esperando voltar, para sermos felizes no fim-de-semana seguinte. Fins-de-semana em que vi o cão mais rebelde do mundo correr e pular nos sofás e de um para o outro numa velocidade só menor do que a alegria de derrubar todas as almofadas no chão. O vi sentar-se e olhar para a gente:
– Sim! Derrubei, sim! E daí? Legal, né?
Eu não poderia deixar esse cachorro mandar em mim! Era muito mimado! Todos atendiam seus chamados para segui-lo até o banheiro e abrir o jato da borda do bidê, de onde ele bebia água. E eu? Ganhei sua confiança para usar meu dedo na borda escorregadia como apoio. Comprei um carro não só para visitar mais fácil e por mais tempo a namorada, mas também para dar voltinhas de despedida pelo quarteirão com quem dormia nos pés da cama, às vezes atrapalhando minhas pernas compridas, e vinha procurar o travesseiro de manhã, como se não fosse nada demais, como se nossas cabeças não estivessem nos travesseiros.
Em 2009, casei-me, sem ainda perceber, com os dois: uma esposa e um caçador de mafagafos invisíveis escondidos no canto da parede. Dividíamos alegrias, manias, problemas e tristezas entre eu, minha esposa do tamanho de um abraço e meu cão do tamanho de um colo (que ele só aceitava em condições especiais). Atrevido, não respeitava nem a privacidade alheia no banheiro. O invadia, olhava cheio de autoridade para quem estivesse sentado no vaso, latia e apontava o rolo de papel higiênico. Persistia até conseguir o tubo de papelão vazio e sair com sua vítima entre os dentes. Achávamos depois os membros decepados de papelão pela casa.
Nem tudo era perfeito, claro. Joker tinha suas ressalvas sobre nosso casamento: morar numa casa separada dos pais da Prik. Ele preferia a praticidade de compartilhar a presença de todos ao mesmo tempo, ainda que a distância fosse só um quintal e ele fosse livre para escolher onde ficar.
A idade transformou seus hábitos em outros ainda mais altivos. Passou a dormir mais, de preferência no sol da manhã, e passamos a ouvir menos suas patinhas pela casa. Já não tentava mais esquartejar minhas meias sujas nem arriscava novas quedas descendo a escada ou pulava suicida de cima da cama ou do sofá. Não, se sua escadinha não estivesse ao alcance, chamava alguém e olhava de peito estufado:
– Ei, você! Me ajude a descer daqui porque estou quase cego e não consigo ver onde pular.
Se era difícil descer do sofá, a impossibilidade de subir o fez transformar qualquer tapete ou capacho sujo em canto de soneca. Afinal, tapete é tapete e, se não serve para mijar, serve para dormir. Às vezes, acordava, erguia-se e conferia se não os havíamos deixado sozinho no cômodo, para então dormir de novo ou protestar a privação de seu direito de estar sempre por perto.
Ele já não ouvia mais o vendedor de quebra-queixo batendo a matraca na rua. Nem queria mais atacar todo ser vivo que não fosse humano. Ou apenas parou de se importar com esses assuntos banais. Muito mais importante era procurar o sol na cozinha dos pais da Prik, no nosso escritório ou na porta da nossa cozinha para dormir quentinho. Rotinas eram importantes. A nossa virou ouvir seus goles d’água, seu focinho no pote de ração, seu ressonar, seus pequenos roncos; observá-lo dormir e aguardar tensos por algum sinal de respiração.
Então, ele ficou muito doente e tivemos, nosso casal de três, a pior das semanas. Seus passeios de carro não foram divertidos.
Pouco antes de perder a lucidez, ele me presentou de novo: uma última lambida no nariz. A partir daí, nosso filhote só terminou de descer a ladeira. Ele já confuso, ainda o ajudei a dar uns passos no chão do pronto-socorro em que estava internado. Nem percebeu que mijou na minha mão.
Então, tivemos, nosso casal de três, o pior dos dias.
Agora falta uma parte do meu casamento e Prik e eu temos obrigação de sermos felizes por três.
Se eu juntar tudo isso, que forma tem o amor? Puro, como só um bichinho pode amar, ele se torna menos abstrato? Ou tentar fazê-lo concreto é só uma mania de nossas “humanices”?
E se eu juntar essa saudade vibrando em volta dos meus ossos?
Joker viveu de 06 de dezembro de 1999 a 16 de agosto de 2015. Começamos a dançar em 2006 e ficamos junto até o último instante.